Além do Determinismo e do Indeterminismo
Texto de Alan Wallace
Determinismo e Indeterminismo, Antigo e Moderno
A diversidade dos conceitos Indianos em relação à causalidade, na época de Buda era típica do pluralismo filosófico mais amplo que marcou esta sociedade, tanto quanto o nosso mundo hoje, e as respostas novas do Buda àqueles conceitos, permanecem sempre intelectualmente desafiadoras e pragmaticamente estimulantes. Então, como agora, os filósofos tendiam a cair em um ou dois campos garais, do determinismo e do indeterminismo. Entre as primeiras, alguns declaravam que todas as experiências agradáveis, desagradáveis ou neutras, se devem ou ao Karma passado (pubbe kata-hetu), ou à vontade de Deus (Issara-nimmana-hetu). Os Ajivikas mantinham a doutrina fatalista que todas as ações são pré-determinadas pela força externa do destino (niyati), sobre as quais as pessoas não têm controle.
Esta visão coincide rigorosamente com a visão determinista moderna de que há a qualquer instante, exatamente um futuro possível fisicamente. Isto implica, por exemplo, que a precisa condição do universo, um segundo após o Big Bang casualmente bastou para produzir o assassinato de John F. Kennedy, em 1963. Buda rejeitou todas estas visões fatalistas em relação à ação e experiência humana.
Outras antigas escolas filosóficas Indianas rejeitaram o determinismo em favor da visão de que todas as experiências ocorrem como resultado do puro acaso, sem causas ou condições anteriores (ahetu-appaccaya). Em alguns aspectos, esta visão se confronta com a de alguns partidários contemporâneos da doutrina do livre arbítrio que argumentam que o indeterminismo demonstrado pela mecânica quântica ao nível sub-atômico, se transfere para o mundo cotidiano da experiência humana sob várias condições especificáveis. Para que os seres humanos sejam a fonte primordial de nossas decisões, de modo que sejamos verdadeira e moralmente responsáveis, eles insistem, não pode haver quaisquer influências anteriores que sejam capazes de determinar as nossas ações subseqüentes.
Em resposta a todas as visões acima, Buda rejeitou com bases pragmáticas, qualquer teoria que enfraquecesse o senso da responsabilidade moral. Por um lado, ele rejeitou o determinismo como "inércia" sustentadora (akiriya) - se alguém não é responsável pelas suas ações, a vontade de agir de um modo saudável, e não de um modo não benéfico, é reprimida. Por outro lado, ele rejeitou o indeterminismo quando declara que todas as experiências e eventos surgem devido ao puro acaso, sem depender de quaisquer causas ou condição (ahetu-appaccaya).
Além disto, ele concluiu com bases empíricas e racionais que não há eu autônomo que exista à parte, e controle o corpo e a mente, e ele igualmente negou a existência de tal eu entre os agregados psicológicos. Ao tomar esta posição, ele refutou todas as noções do eu como uma causa (motivo) inalterada, como um agente que causa determinados eventos, sem que nada o leve a tomar as suas decisões. Assim, o sentido de que cada um de nós é um sujeito autônomo, não físico que exercita o controle fundamental sobre o corpo e a mente sem ser influenciado por condições anteriores físicas ou psicológicas, é uma ilusão.
Vontade e Ação no Budismo Inicial
À primeira vista, esta posição Budista pode parecer idêntica a de determinados cientistas cognitivos contemporâneos e filósofos da mente. Por exemplo, neste livro "A Ilusão da Vontade Consciente", o psicólogo Daniel M. Wegner escreve: "Parece com cada um de nós que temos vontade consciente. Parece que temos eus. Parece que temos mentes. Parece que somos agentes. Parece que causamos o que fazemos... é sensato e basicamente certo chamar a tudo isto de ilusão." Em lugar algum do cérebro, os neurocientistas encontram qualquer centro de controle que pudesse servir como o correlato neural de um eu autônomo, nem encontram qualquer evidência de um eu independente que influencie as funções cerebrais. Ao contrário, o cérebro parece funcionar de acordo com os seus próprios mecanismos internos, sem nenhum eu independente agindo como um rei, presidindo, governando e avaliando as atividades do cérebro. De acordo com esta visão materialista, todas as influências causais nos processos mentais, ocorrem no complexo maquinismo do cérebro, além do âmbito da consciência introspectiva.
Mas estas aparentes semelhanças ocultam incompatibilidades fundamentais entre o Budismo e o materialismo científico. Considerando que muitos materialistas acreditam que as atividades do cérebro precedem e geram todos os processos mentais e que aqueles próprios processos consistem de atividade cerebral, Buda declarou: "Todos os fenômenos são precedidos pela mente, emitidos da mente, e consistem da mente." Basicamente a esta ênfase Budista, da prioridade da mente, em relação ao comportamento, está o papel do fator mental da vontade, ou propósito (cetana), que determina quais ações têm conseqüências morais. Realmente, Buda comparou virtualmente a vontade com o Karma, quando ele declarou: "É a vontade, ó monges, que eu chamo de Karma; tendo desejado, se age através do corpo, da palavra ou da mente."
Somente as ações voluntárias produzem resultados Kármicos, e a magnitude das conseqüências morais das ações de alguém, corresponde diretamente ao grau do equilíbrio mental, da inteligência e da compreensão. Assim, as conseqüências morais das ações de uma pessoa que esteja intoxicada (embriagada), perturbada, ou com lesão cerebral, são relativamente leves, enquanto aquelas de uma pessoa de mente sã e com clara compreensão, são relativamente pesadas. Isto corresponde rigorosamente aos princípios modernos da jurisprudência. Além disto, é incorreto pensar que o Karma anterior determina todas as experiências e sentimentos de alguém. Embora todos os sentimentos que surgem junto com a consciência inicial dos estímulos sensoriais, sejam o resultado do Karma passado, os sentimentos que surgem em seguida a tais estímulos, não são predeterminados pelo Karma passado, mas são o resultado do Karma recente, associados ao modo que se responde àqueles estímulos. E assim, os atos da vontade são condicionados tanto por influências anteriores, assim como por outros fatores, tais como a qualidade da consciência, que sejam simultâneos com ela. Neste sentido, o Budismo defende uma meio do livre arbítrio, à medida que se possa refletir nas opções da pessoa e decidir o melhor curso de ação em termos de sua conveniência moral.
Determinismo e Responsabilidade Moral
Alguns cientistas e filósofos contemporâneos afirmam que o determinismo - definido como a visão de que há em qualquer instante exatamente um possível futuro - é compatível com a responsabilidade moral. Daniel Wegner, por exemplo, argumenta que as nossas ações são completamente determinadas pela atividade cerebral, anterior à experiência consciente de tomar decisões, de modo que a consciência não faça nada realmente. Por esta razão, a vontade consciente é uma ilusão, mas é, contudo, o guia da pessoa para a sua própria responsabilidade moral pela ação, e a ação moral é absolutamente real. Mas ele deixa de fornecer qualquer explicação convincente de como algo que é uma ilusão e não faz nada, possa ser responsável pela ação moral. Deveria também ser notado que em sua premissa fundamental de que a vontade consciente é um epifenômeno, a ilusão ineficaz foi científica e filosoficamente mostrada como inconclusiva.
O filósofo Daniel C. Dennett assume uma posição virtualmente idêntica, e os seus argumentos se defrontam com este mesmo dilema fundamental. Por um lado, ele declara que cada ser humano, nada mais é do que um conjunto de cem trilhões de células, cada uma delas, um mecanismo cuidadoso, um micro-robô basicamente autônomo, funcionando em estrito acordo com as leis da física e da biologia. Por outro lado, ele escreve: "A liberdade Humana não é uma ilusão; é um fenômeno objetivo, distinto de todas as outras condições biológicas e encontradas em apenas uma espécie: nós. Em uma série de argumentos, elaborada, porém fundamentalmente plausível, ele tenta afirmar a existência de "agentes humanos autônomos", que exercitam o livre arbítrio como a sua habilidade de controlar a ação, sempre que não há restrições, coerções, ou compulsões que limitem o seu comportamento. Entretanto, em lugar algum ele fornece qualquer argumento atrativo para a existência de um agente humano, ou entre, ou à parte dos robôs atentos que criam totalmente um organismo humano.
Aqueles que argumentam uma "compatibilidade" entre o determinismo e a responsabilidade moral, parecem ser movidos por motivos independentes. Intelectualmente, eles se persuadiram que a totalidade da existência humana, e até a realidade como um todo, pode ser inteiramente explicada em termos de categorias humanas da física e da biologia.
Esta é a base para o seu determinismo. Mas eles sentem também uma imperiosidade psicológica em afirmar a responsabilidade moral, sem a qual a civilização humana é virtualmente inconcebível.
Presos nos tentáculos deste dilema, eles são forçados a introduzir ilegitimamente, a moralidade e o propósito nas atividades deterministas dos átomos e das células, o que é injustificado por tudo o que atualmente conhecemos de física e biologia. Este enigma faz a má ciência e a má filosofia.
Como notado anteriormente, de acordo com o determinismo materialista, baseado na física clássica, a condição precisa do universo logo após o Big Bang, bastou para produzir o assassinato de John F. Kennedy, em 1963, o que implica que Lee Harvey Oswald era uma engrenagem passiva no maquinismo determinista do mundo físico. Desde que as suas ações foram predestinadas bilhões de anos antes que ele as cometesse, é absurdo falar dele como tendo qualquer tipo de livre arbítrio, e é irracional afirmar que ele era moralmente responsável por suas ações.
Alguns estudiosos Budistas contemporâneos, enquanto evitam o materialismo, defendem a compatibilidade entre o determinismo e a responsabilidade moral, citando o princípio Budista: "Quando isto existe, isto vem a ser, com o aparecimento disto, isto surge." Se o universo é determinista, de acordo com a causalidade puramente física (materialismo), ou de acordo com a causalidade mente-matéria (Budismo), é ainda determinista, implicando que o presente é completamente condicionado e determinado pelo passado. Se isto é verdade, então Lee Harvey Oswald não tinha mais uma escolha de matar ou não matar John F. Kennedy no mundo, de acordo com o Budismo, do que ele tinha no mundo de acordo com o materialismo. Se a qualquer instante há exatamente um futuro fisicamente possível, como o determinismo mantém, então o presente é absolutamente predeterminado pelo passado. Isto não oferece nenhum espaço para qualquer tipo de liberdade ou responsabilidade moral.
Como notado anteriormente, Buda rejeitou qualquer teoria - seja determinista ou indeterminista - que enfraqueça nosso sentido de responsabilidade moral e a nossa inspiração para abandonar os vícios e cultivar a virtude. As relações causais entre as ações e as suas conseqüências morais, são tão complexas e sutis, que elas não podem ser plenamente compreendidas pela mente conceitual. Assim, é vital não se imobilizar pela falta atual de compreensão decisiva da análise racional científica ou filosófica ao afirmar a existência da responsabilidade moral. A coisa importante é reconhecer primeiro aqui e agora, os inúmeros modos nos quais não somos livres em fazer escolhas sábias e seguir cursos de ação que sejam verdadeiramente benéficos ao nosso próprio bem estar e ao de outros, e então nos devotarmos ao cultivo de tal liberdade.
O Ideal Budista da Liberdade
Considerando uma definição moderna de liberdade, como a capacidade de conquistar o que é de valor em uma série de circunstâncias, a tradição Budista enfatiza claramente que os seres sensíveis comuns não são livres, pois somos constrangidos por aflições mentais, tais como o desejo ardente, a hostilidade e a desilusão; e, à medida que conduzimos as nossas vidas sob o domínio destas aflições, nós permanecemos em sujeição de seu sofrimento resultante. Mas Buda colocou a hipótese verdadeiramente surpreendente de que o sofrimento e as suas causas internas, não são intrínsicas à mente, pois em cada ser existe uma dimensão "muito brilhante" (pabhassaram) de consciência que, ainda que velada por violações (profanações) casuais, pode ser revelada através da prática espiritual.
Os comentários do Budista Theravada, identificam esta mente brilhante como " a razão de se tornar" naturalmente pura (bhavanga), o estado latente da mente que não está incluído entre os seis modos da consciência, isto é, os cinco sentidos físicos e então a consciência mental comum. A dimensão da consciência se manifesta no sono sem sonhos e na morte, e durante o estado desperto que a mente reverte momentaneamente a ela entre os períodos de engajamento com os seus objetos de cognição. Sob circunstâncias normais, geralmente não se tem um reconhecimento claro deste estado relativo de consciência, mas ele pode ser apreendido vivamente com a meditação, com a atenção estável e muito focada (samadhi), no qual a consciência é afastada de todos os objetos, sensoriais e mentais.
Esta mente brilhante pode alternativamente ser compreendida como o estado incondicionado da consciência que está presente após um arhat, aquele que atingiu o nirvana, parte, para nunca mais renascer. Tal consciência que transcende os cinco agregados psicológicos, é considerada não manifesta (anidassanam), eterna e incondicionada. Desde que ela é incriada - não criada recentemente por causas anteriores - e não é a consciência de alguém ou de algo, a não ser de si mesma, ela já deve estar presente em cada ser sensitivo, antes da realização do nirvana. Este reino da consciência está além do âmbito da mente conceitual, assim a sua possível influência nas mentes de seres sensitivos comuns é inimaginável.
Tal mente pura e transcendente, parece ser semelhante à natureza de Buda (buddha-dhatu), apresentado no Budismo Mahayana e à consciência pura (vidya rig pa), ensinada na Grande Perfeição. Esta dimensão primordial da consciência é considerada como a fonte mais profunda de nosso anseio pela felicidade e liberação, e isto pode ser a principal base da liberdade para todos os seres. Mas desde que a sua natureza transcende o domínio da mente racional, conceitual, ela não se presta a uma análise racional, e o seu modo de impactar a mente e o resto do mundo natural, do mesmo modo se encontra além do reino da filosofia. Ela pode ser conhecida diretamente através da consciência não dual, mas não pode ser um objeto do intelecto.
O caminho da prática espiritual pode ser ligado ao processo de refinar o minério de ouro que está contaminado por impurezas. O primeiro passo neste caminho é cultivar um modo de vida saudável, evitando o comportamento que seja prejudicial ao bem estar próprio e dos outros. Nesta base da ética, se procede a equilibrar a mente através do cultivo da atenção focalizada, pois, como o Indiano Bodhisattva Santideva advertiu: "uma pessoa cuja mente é distraída vive entre as garras das aflições mentais". Quando a mente está sujeita aos desequilíbrios da atenção, tais como a lassidão e a excitação, é como se o sistema imunológico e psicológico de alguém, estivesse debilitado, e assim todos os tipos de problemas mentais podem facilmente oprimi-lo.
O cultivo da atenção focalizada tem um significado direto e importante na moralidade e na liberdade da vontade. William James declarou em relação a isto: "No que um ato moral consiste quando reduzido a sua forma mais simples e elementar?"... ele consiste no esforço da atenção pelo qual nós nos apegamos a uma idéia, apesar de que este esforço de atenção seria expulso da mente por outras tendências psicológicas que estão lá". E o filósofo Francês Charles Renouvier, muito admirado por James, definiu o livre arbítrio como o suporte de um pensamento, porque se escolhe quando se poderia ter outros pensamentos.
Com o desenvolvimento da atenção sustentada, ativa, a consciência pode estar introspectivamente focalizada nos próprios sentimentos, desejos, pensamentos e intenções, enquanto elessurgem de momento a momento. Como o Indiano Nagasena ensinou ao Rei Milinda, a prática Budista da atenção requer dirigir a atenção para tendências benéficas e não benéficas, e as reconhecendo como tais, de modo que se possa cultivar as primeiras e rejeitar as últimas. Tal consciência discernente, metacognitiva, permite a possibilidade de escolher livremente se permite ou não um desejo que conduza ou permita uma intenção que resulte em ação verbal ou física. Resumindo, a liberdade da vontade depende da habilidade de reconhecer os vários impulsos que surgem involuntariamente na mente e escolher entre eles, aceitar ou rejeitar.
Sem tal monitoramento interno dos estados e processos mentais, a mente cai sob o domínio do condicionamento prejudicial, habitual, com a atenção se focalizando compulsivamente em fenômenos atrativos (subha-nimitta), por meio disto, reforçando o desejo ardente, e em fenômenos desagradáveis (patigha-nimitta), por meio disto reforçando a hostilidade. Tal atenção mal orientada está também propensa a levar alguém a perceber como permanente o que é impermanente, como satisfatório o que é insatisfatório, e como um eu, o que é não eu. Para superar tais modos ilusórios de perceber a realidade, deve-se acrescentar ao cultivo da quietude meditativa (samatha), o desenvolvimento do insight (vipassana), através da aplicação rigorosa da atenção (satipatthana) ao corpo, aos sentimentos, à mente e aos fenômenos. Somente através da unificação da quietude meditativa e do insight, se pode adquirir completa liberdade das aflições mentais e do seu sofrimento resultante, revelando assim a pureza inata da mente brilhante.
O Caminho do Meio Além do Determinismo e do Indeterminismo
Deve-se devotar a si mesmo ao caminho da liberdade do sofrimento e suas causas, sem saber se se pode realmente exercitar a liberdade da vontade que não esteja totalmente determinada por circunstâncias anteriores. Entretanto, pode ser útil ter uma hipótese operacional para o livre arbítrio ser realizado. Um dos principais pontos intrigantes para qualquer afirmação Budista do livre arbítrio é a natureza do eu, ou agente, que o possui. Nós já notamos que nenhum eu autônomo, controlador, pode ser encontrado ou entre ou à parte dos processos dinâmicos e constituintes do corpo e da mente; e esta é a base para a afirmação Budista do "não eu".
O mesmo tipo de análise que é aplicado ao eu pode ser igualmente aplicado a todos os outros fenômenos. Por exemplo, Buda afirmou que uma carruagem, como o eu, não existe como uma coisa substancial, independente dos seus componentes individuais. Ele não é equivalente a qualquer uma de suas partes individuais, nem a coleção inteira destas partes, constitui uma carruagem. O termo carruagem é algo designado a uma reunião de partes, nenhuma das quais, ou individualmente ou coletivamente, é uma carruagem. A carruagem vem à existência somente quando o rótulo carruagem é designado com base destas partes. Do mesmo modo, o termo EU é designado do corpo e da mente, o que não é, por si mesmos, um verdadeiro eu. "EU" vem à existência somente quando eu sou conceitualmente designado como tal. Quando a maior parte de nós usa estes conceitos e convenções, incluindo as palavras EU e MEU, nós compreendemos estes referentes destes rótulos como sendo reais, independentes de nossas projeções conceituais; e esta é a parte ilusória para todas as aflições mentais, tais como o desejo e a hostilidade. Aqueles que estão livres da ilusão ainda usam estes conceitos e palavras, mas eles não são enganados por eles.
Tal análise ontológica pode ser aplicada ao corpo e à mente e todas as suas partes constituintes, do mesmo modo que é aplicada ao eu, de modo que o eu não é menos real do que qualquer outro fenômeno. Portanto, assim como podemos falar significativamente de uma carruagem realizando determinadas funções, assim podemos nos referir ao eu como um agente que toma decisões e se engaja em atividades voluntárias. Mas o desafio do determinismo permanece: Se todas as decisões e ações no momento presente são determinadas completamente por causas e condições anteriores - sejam elas físicas ou mentais - como pode qualquer tipo de livre arbítrio ser pressuposto?
Como eu propus anteriormente, a definição de determinismo não permite tal liberdade. O fatalismo é a implicação inevitável do determinismo, tão certamente como eventos posteriores são inevitavelmente determinados por condições anteriores de acordo com o determinismo. Por outro lado, enquanto alguns filósofos observam o indeterminismo da física quântica como uma saída do fatalismo, é difícil ver como esta estratégia permite uma cena clara e coerente de um agente humano, exercitando o livre arbítrio. A maior parte das interpretações, tanto de determinismo, quanto do indeterminismo, está baseada em hipóteses do realismo metafísico, isto é, que o mundo consiste de objetos independentes da mente; há exatamente uma descrição verdadeira e completa do modo que é o mundo; e a verdade envolve algum tipo de correspondência entre o mundo independentemente existente e uma descrição dele.
O Caminho do Meio (Madhyamaka), proposto por Nagarjuna, constitui uma rejeição expressa da reificação (atitude que consiste em tratar conceitos abstratos como se fossem reais ou objetivos), do tempo e da causalidade, que forma a base da maior parte das versões do realismo metafísico. Todos os fenômenos causamente condicionados surgem de acordo com um processo de criação dependente (pratitya-samutpada), em dependência de três fatores: 1 - causas anteriores, 2 - suas próprias partes e atributos constituintes, e 3 - designação conceitual. Uma carruagem, por exemplo, surge em dependência de 1 - dos materiais que foram usados para fazê-la e do trabalho do carpinteiro, ao construí-la; 2 - de seus componentes individuais, e 3 - da designação conceitual de "carruagem' que é imputada a esta reunião de partes. O primeiro modo de dependência, requer causas e condições anteriores, resultando em um produto subseqüente. A dependência da carruagem de suas partes, é simultânea: o todo e as partes existem simultaneamente. E a carruagem como uma entidade designada, vem à existência simultaneamente com a sua designação conceitual como tal.
Para todos os fenômenos, a base da designação nunca é idêntica ao objeto que está imputado nesta base. Para usar o mesmo exemplo, uma carruagem é formada de seus chassis, rodas, eixos e cabo, mas nenhuma destas partes - seja individualmente ou coletivamente - constitui uma carruagem. A carruagem como um todo vem à existência simultaneamente com a imputação deste rótulo nestas partes, mas elas poderiam ter sido designadas de outro modo. O que isto implica é que as entidades que compõem o mundo em que vivemos, surgem em dependência de nossas designações conceituais, e aquelas designações são predeterminadas por causas e condições anteriores. Há liberdade no momento presente de visualizar o mundo de acordo com diferentes estruturas conceituais, e é onde o livre arbítrio pode entrar em nossa experiência. Ao mudarmos o nosso modo de criar os fenômenos (manifestações) e dar sentido a eles, dentro de nossa estrutura cognitiva, nós alteramos a natureza do mundo, como ele surge de momento a momento, relativo ao nosso modo de percebê-lo.
A relatividade de todos os fenômenos com respeito à estrutura de referência cognitiva dos quais eles são vivenciados, é colocada em uso em muitas práticas Budistas, a fim de superar as aflições mentais e cultivar estados mentais e comportamento sadios. O gênero do Budista Tibetano de "treinamento da mente" (blo sbyong), é explicitamente designado para ajudar a transformar todas as circunstâncias, venturosas e adversas, de modo que elas surjam como auxílios para o crescimento e a maturação espiritual. Ao designar conceitualmente os eventos de modos que apóiem mais a virtude do que as aflições mentais habituais, se altera o mundo em que se vive; e isto constitui uma liberdade fundamental da escolha.
De acordo com o Caminho do Meio, mesmo o próprio tempo não tem nenhuma natureza inerente por si mesmo, independente de designação conceitual. Enquanto os eventos passados certamente influenciam o presente, o modo com que agora designamos o passado, determina também como ele surge para nós, relativo a nossa presente estrutura de referência cognitiva. Obviamente, há uma assimetria entre o passado e o presente, de acordo com o Budismo, assim como a física moderna. Nós podemos pensar como percebemos um pedaço de fruta podre, mas isto não reverterá o processo de decomposição. Mais geralmente, nós não podemos mudar o passado, pois ele existe independentemente de nossos modos de percepção e concepção. Mas nós podemos mudá-lo, relativo as nossas estruturas cognitivas de referência, e de acordo com o Caminho do Meio, não há passado, presente ou futuro, independente de tais estruturas de referência. E assim o passado pode nos causar um impacto de inúmeros modos, dependendo da maneira na qual nós o designamos conceitualmente no presente. Ao designarmos os fenômenos que se originam do passado de modos diferentes, a natureza dos eventos passados, muda correspondentemente, relacionada a estes modos atuais de designação.
Evocando uma analogia na física moderna, o físico Eugene Wigner, comentou: "Nós não conhecemos qualquer fenômeno, no qual um sujeito seja influenciado por outro sem exercer uma influência neste". Ao concretizarmos o tempo, nós assumimos que o passado influencia o presente, mas não é influenciado pelo presente; e que o presente influencia o futuro, mas não é influenciado por ele. Tal influência unilateral vai contra a natureza da atual compreensão científica do mundo físico. A visão de Madhyamaka nega a existência inerente de todos os três tempos, apoiando a visão de que todos eles podem influenciar uns aos outros, relativo à estrutura de referência da qual eles são designados.
O físico John Archibald Wheeler explicou este princípio em termos de física quântica: "É errado pensar neste passado como "já existente", em todos os detalhes. O "passado" é teoria. O passado não tem existência, exceto quando registrado no presente. Ao decidirmos que questões o nosso equipamento de registros quânticos colocará no presente, nós temos uma escolha incontestável quanto ao que temos o direito de dizer sobre o passado". Por exemplo, os sistemas de medição usados pelos cosmólogos aqui e agora, desempenham um papel crucial ao realizar o que parece ter acontecido na evolução inicial do universo. Ele conclui: "Útil como é, sob circunstâncias comuns, dizer que o mundo existe "lá fora", independente de nós, esta visão não pode mais ser sustentada. Há um sentido estranho no qual este é um "universo de participação"".
Mais recentemente, os físicos Stephen W. Hawking e Thomas Hertog propuseram que não há absolutamente nenhuma história objetiva do universo como ele existe independentemente de todos os sistemas de avaliação (medição) e modos de investigação conceitual. Ao invés disto, há muitas histórias possíveis, entre as quais os cientistas selecionam uma ou mais, baseadas em seus métodos específicos de investigação. De acordo com Hawking, cada versão possível do universo, existe simultaneamente em um estado de superposição quântica - mais como uma série de possibilidades do que como realidades concretas. Quando fazemos uma avaliação, nós selecionamos deste âmbito de possibilidades, um subconjunto de histórias que compartilhem as características específicas avaliadas. Para relacionar isto com o Caminho do Meio: Esta é uma expressão de nossa liberdade, escolher as bases de designação, nas quais podemos novamente escolher livremente, designar uma história do universo como o concebemos, baseados neste subconjunto de histórias. Deste modo, podemos exercitar o nosso livre arbítrio, não somente para estabelecer o nosso passado, mas também para estruturar o nosso presente e lançar as sementes de nosso futuro.
A natureza vazia ou não inerente do tempo, é também incorporada na prática Vajrayana Budista, na qual se "assume a realização como o caminho" (bras bu lam 'khyer). Isto significa que, enquanto ainda se é um ser sensitivo não iluminado, se cultiva o "orgulho divino" (lha'i nga rgyal) de se considerar como o Buda, com base no Buda que se tornará no futuro. Do mesmo modo, se desenvolve a "percepção pura" (dag snang) de perceber todo o meio e todos os seus habitantes, como manifestações da consciência iluminada (dharmakaya), que é uma emulação (imitação) da percepção pura de um Buda. Deste modo, se retrata o poder transformador da iluminação futura no momento presente, com a compreensão de que o futuro não é inerentemente real e separado do presente. Com tal prática, baseada em uma compreensão do vazio e da natureza do Buda de todos os seres, se está livre para possibilitar o futuro de influenciar o presente.
Outro modo de interpretar o cultivo do orgulho divino é identificar a natureza do próprio Buda, ou a consciência pura, como a base da designação para a própria identidade de alguém aqui e agora. As bases da designação da percepção comum da personalidade estão no corpo e mente atuais. Quando se refere a si mesmo como tendo vidas passadas e futuras, a base da designação para a identidade de alguém é a consciência, a qual, de acordo com a Grande Perfeição, proporciona a continuidade de uma vida para a seguinte. Quando se assume a identidade de um Buda, como na prática do orgulho divino, a base da designação para esta percepção do eu, é a própria natureza eterna do Buda. Na prática da Grande Perfeição, se baseia não conceitualmente nesta consciência pura, eterna, permitindo que as ações surjam espontaneamente e facilmente, estimuladas pela interação da própria sabedoria intuitiva e pelas necessidades dos seres sensitivos de momento a momento. Deste modo, se realiza um tipo de liberdade que transcende as demarcações do passado, presente e futuro. Como vimos, Buda rejeitava os extremos filosóficos, tanto do Determinismo quanto do Indeterminismo, e desencorajava os seus seguidores de aceitar qualquer percepção que pudesse debilitar a inspiração deles de se devotarem a uma vida ética, na busca da liberação. Em termos pragmáticos, como seres sensitivos comuns, nós não temos o livre arbítrio para alcançar o que é de valor dentro de nosso âmbito de circunstâncias, à medida que as nossas mentes são dominadas por aflições mentais. Mas Buda declarou que estas fontes de dependência não são inerentes a nossa existência, que elas podem ser dispersadas através da prática espiritual sustentada e hábil. O Caminho do Meio mostra como o livre arbítrio pode operar dentro do vínculo das relações causais através do tempo; os ensinamentos da natureza de Buda revelam a fonte primordial de nossa liberdade, e a tradição Vajrayana, incluindo a Grande Perfeição, demonstra como a liberdade implícita nos ensinamentos de como o Caminho do Meio e a natureza de Buda podem ser colocados plenamente em uso, na realização rápida (imediata) da liberação e da iluminação.
Tradução: Regina Drumond - reginamadrumond@yahoo.com.br
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